Princípios de Bioética em Embriologia na Medicina Reprodutiva

08 jul, 2020

Princípios de Bioética em Embriologia na Medicina Reprodutiva

 

 Jaqueline Verceze, Raquel Alvarenga, Fernando Guimarães

  

“De todas as ciências que o homem pode e deve saber, a principal é a ciência de viver fazendo o mínimo de mal e o máximo possível de bem.”

Leon Tolstoi

  

Conceitos Básicos

A ética possui uma inter-relação com os aspectos funcionais da sociedade, como a conduta humana e a vida social, existindo em todas as sociedades humanas, sendo um conjunto de princípios e regras. Tem como objetivo estabelecer determinadas normas para um convívio em sociedade pacífica e organizada (Pessini & Barchifontaine, 2012). A ética é considerada como uma orientação para as ações dos profissionais que estão envolvidos em um processo, o qual permite uma análise e avaliação do que é legalmente aceito ou não pela sociedade em que se atua.

Os primeiros indícios da bioética ocorreram em meados de 1960, com a revelação em jornais e outros meios de comunicação, dos acontecimentos desumanos ocorridos com prisioneiros e populações impactadas pelas guerras. O surgimento do termo bioética ocorreu em 1971, por Van Rensselaer Potter:

“Bio”: conhecimento biológico, a ciência dos sistemas viventes; “ética”: conhecimento dos sistemas de valores humanos.

Um conceito bem mais complexo, porém muito bem colocado, para a Reprodução humana é de Cristian de Paul de Barchifontaine, autor de “Bioética e início da vida – alguns desafios”:

“Ética é mecanismo de coordenação e instrumento de reflexão para orientar o saber biomédico e tecnológico, em função de uma proteção cada vez mais responsável da vida humana. A bioética, por ser um ramo da ciência que procura estar a serviço da vida, engloba em suas reflexões os aspectos sociais, políticos, psicológicos, legais e espirituais. É uma reflexão sobre o resgate da dignidade da pessoa humana frente aos progressos técnico-científicos na área da saúde, frente à vida. Com sua possibilidade de redesenhar o ser humano, com o seu poder de destruir ou construir, esses progressos podem alterar a identidade da pessoa humana.”

A bioética tem a peculiaridade de ser reflexão sobre as implicações sociais, econômicas, políticas e éticas dos novos saberes biológicos e ação que objetiva estabelecer um novo contrato social entre sociedade, cientistas, profissionais da saúde e governo, sobre as questões do presente e as perspectivas de futuro (Oliveira, 1997).

São os princípios da bioética, a saber: a autonomia, a não maleficência, a beneficência, a justiça, a equidade e a responsabilidade.

As virtudes humanas também são consideradas para que a ética seja praticada com excelência: como a prudência, que é o reto agir; o bom senso, o equilíbrio; a temperança, baseada no auto-controle; o domínio, a renúncia e a moderação;  a fortaleza, ser forte no bem, a perseverança nas dificuldades; a resistência à mediocridade, evitando omissões, e a justiça, que regula nossa convivência, possibilita o bem comum, defende a dignidade humana e respeita os direitos.

Os fundamentos de ética que nos norteiam compreendem os princípios estabelecidos na Declaração de Helsinque, código de Nuremberg, declaração Universal dos Direitos Humanos, código Civil e o Código Penal Brasileiro, resoluções de órgãos de Vigilância Sanitária (ANVISA), resoluções do CFM (Conselho Federal de Medicina) e dos respectivos CRMs (Conselhos Regionais de Medicina), diretivas do seu conselho profissional, e orientações da Associação (PRONÚCLEO – Associação Brasileira de Embriologistas em Medicina Reprodutiva).

 

Bioética em Reprodução Assistida

A Embriologia na Reprodução Humana Assistida (RA) surgiu na Inglaterra em 1978, quando nasceu o primeiro bebê de Fertilização in vitro.

Se a questão relativa ao início da existência do ser humano já era tormentosa em se tratando de um ser concebido por meios naturais, no ventre da mãe, potencializaram-se as dificuldades diante de fatos inéditos decorrentes da fertilização in vitro: a) possibilidade de um hiato entre o momento da fecundação e da gestação, que pode se dar por tempo indefinido; b) existência de embriões criopreservados, denominados excedentes, que não serão utilizados para fins de reprodução; c) possibilidade de gestação por mulher que não seja a mãe biológica, isto é, fornecedora do gameta feminino; d) questionamento quanto ao momento a partir do qual pode-se considerar existente um embrião (Barboza, 2005).

Ao confrontarmos os temas relacionados aos desenvolvimentos na medicina e biotecnologia modernas, é preciso que nos perguntemos constantemente sobre o que pode e o que não pode ser justificado eticamente. Técnicas inovadoras como a pesquisa de células-tronco e o diagnóstico pré-implantacional dão origem a questões éticas radicalmente novas e com elas surgem novos conflitos de interesses (Jansen, 2005). As conquistas da biogenética humana apresentam transcendência indubitável sobre as definições e regulações jurídicas, fugindo a toda previsão e deixando à vista um perigoso vazio insuperável que os velhos conceitos não satisfazem (Cifuentes, 1992).

A Reprodução Assistida possui uma série de protocolos técnicos e estruturados por uma infraestrutura e tecnologia de ponta, que somados a uma equipe multiprofissional coesa possui o objetivo principal de auxiliar a diversos casais a conseguirem uma gestação saudável, que em condições naturais não chegam a este objetivo devido a diversos fatores sejam biológicos ou não. O alto desenvolvimento da tecnologia na área da RA pode ocasionar uma distorção sobre o que é ético e causar a sensação de que tudo é possível e nada é proibido.

A ética profissional, muitas vezes não sendo devidamente observada, poderá produzir danos irreversíveis tanto à saúde da paciente, quanto do bebê a ser gerado, produzindo atos criminosos que ferem os princípios constitucionais que garantem os direitos e a dignidade dos seres humanos (Araújo & Araújo, 2018).

Todos os profissionais da área de saúde, como médicos, enfermeiros, biólogos, psicólogos, embriologistas, entre outros, envolvidos nas técnicas de RA, devem sempre respeitar, acima de qualquer coisa, a dignidade da pessoa humana. O respeito à vida e sua preservação são valores inerentes à própria natureza humana e como tal estes valores devem acompanhar a prática profissional dentro da ética estabelecida pelos conselhos de classes de cada um dos especialistas envolvidos nos procedimentos de RA (Araújo & Araújo, 2018).

 

O Código de Ética e Conduta da PRONUCLEO

Em 2018, através da Associação Brasileira de Embiologistas em Medicina Reprodutiva – PRONUCLEO- foi publicado o 1o Código de Ética e Conduta da Associação Brasileira dos Embriologistas. A publicação deste código coincidiu com os 40 anos de existência da função de embriologista, em 25 de julho de 2018, data comemorativa do nascimento de Louise Brown.

As normativas mínimas para o exercício da profissão baseiam-se em exigir do profissional treinamento em RA, com graduação concluída na área da saúde; possuir habilitação em embriologia, ou título de capacitação, ou mínimo de 6 meses de experiência comprovada ou ter acompanhado integralmente pelo menos 50 ciclos de FIV/ICSI; atualização mínima anual através de cursos, treinamentos, congressos, entre outros; e possuir o registro do conselho de classe ativo.

Entre os direitos dos embriologistas, destacam-se a necessidade de suspender atividades, ou se negar a exercer, quando não houver condições asseguradas em legislação vigente; e o direito à folgas ou descanso, para resguardar sua capacidade de trabalho, sua vida pessoal, a sua sanidade física e mental.

Entre os deveres do embriologistas previstos no código estão a obrigatoriedade de denunciar à Anvisa  (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e/ou aos órgãos competentes incidentes, eventos adversos e queixas técnicas, irregularidades, ou má conduta. Informar à Associação e∕ou demais órgãos competentes situações de coação, entre outras circunstâncias que comprometam o trabalho. Nenhum embriologista dever assumir tarefas para as quais eles não tenham sido devidamente treinados, e não se prevalecer de cargo para desrespeitar a dignidade de subordinado ou induzir ao descumprimento do código.

As relações profissionais devem ser de respeito, sendo que um  embriologista não deverá prejudicar a reputação ou atividade de outro embriologista que ocupa cargo superior na hierarquia. Não deverá  se apropriar e publicar em seu nome trabalho científico do qual não tenha participado ou atribuir-se autoria exclusiva. Não ser conivente com qualquer outro profissional em erros, omissões, faltas éticas ou delitos cometidos, sendo passível de punições e sansões.  E ainda não se submeter a influências comerciais utilizando-se do cargo como embriologista para benefício próprio.

As responsabilidades profissionais condenam o ato de afastar-se de suas atividades profissionais, sem deixar outro responsável, por motivo fútil. E praticar ou indicar procedimentos desnecessários ou proibidos pela legislação vigente no País.

Sobre as relações com os colegas, é vetado ao embriologista caluniar, denegrir, injuriar, difamar ou denunciar um colega de profissão, sem provas. Pleitear de forma desleal, emprego, cargo ou função de outro embriologista, ou realizar concorrência desleal. Não poderá angariar clientela mediante propaganda enganosa. O embriologista não pode usar função diretiva para enriquecimento ilícito.

Em relações às regulamentações vigentes, o embriologista deverá cumprir atos e resoluções e fornecer informações fidedignas a respeito do exercício profissional. É ainda vetado valer-se de título acadêmico, especialidade ou experiência que não possa comprovar. Constitui falta grave mascarar, adulterar ou falsificar resultados.

O embriologista deverá ser digno da função que exerce, comportando-se com integridade e probidade, zelando pela própria reputação, mesmo fora do exercício profissional. Deverá zelar pela confiança pública na profissão, defendendo a boa reputação da profissão e não cometendo quaisquer atos que a desonre.

Embora a PRONUCLEO, como associação, não tenha poder punitivo, poderá oferecer denúncia aos órgãos reguladores, através dos conselhos de classe, ou poderá valer-se da justiça comum, no caso de infrações que ferem o direito positivo.

A embriologia é uma profissão que requer um amor altruísta, e uma incansável dedicação, em processos de muita responsabilidade, onde a ética não é exibida, mas necessária, e o resultado maior é a recompensa de uma consciência tranquila e uma família feliz.

Finalmente, o embriologista deverá exercer sua atividade profissional com zelo, dedicação, responsabilidade e honestidade. Citando Oscar Wilde:

“Chamamos de ética o conjunto de coisas que as pessoas fazem quando todos estão olhando. O conjunto de coisas que as pessoas fazem quando ninguém está olhando chamamos de caráter.”

 

 

Referências Bibliográficas

Araújo, JPM; Araújo,CHM.  Biodireito e legislação na reprodução assistida, – Medicina (Ribeirão Preto, Online.) 2018;51(3):217-35.

Barboza, HH: A nova Biotecnologia e a medicina atual necessitam de um tipo diferente de insumo bioético, ou trata-se de um conflito ético de interesses? In: CasabonaC. M. R.QueirozJ. F. (Coord.). Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 248-268. ISBN 9788573087321.

Barchifontaine, Christian de Paul de, 1946- Bioética e início da vida: alguns desafios/ Christian de Paul de Barchifontaine — Aparecida,SP: Idéias e Letras; São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2004. ISBN 85-98239-05-4 (impresso) ISBN 978-85-7698-081-0 (e-book).

Cifuentes, Santos. El embrión humano. Principio de existencia de la persona. Abuso del derecho y otros estudios, en homenaje a Abel M. Fleitas, Bs. As.Abeledo- Perrot, Editorial Astrea, 1992.

Código de Ética e Conduta da Associação Brasileira de Embriologistas, 1ª. Edição, PRONUCLEO. Março, 2018. www.pronucleo.com.br

Jansen, B: A nova Biotecnologia e a medicina atual necessitam de um tipo diferente de insumo bioético, ou trata-se de um conflito ético de interesses? In: CASABONAC. M. R.QUEIROZJ. F. (Coord.). Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 3-12. ISBN 9788573087321

Oliveira, F. Bioética – uma face da cidadania. São Paulo – SP: Moderna, 1997. 144 p. (Coleção Polêmica.)

Pessini L, Barchifontaine CP. Problemas atuais de bioética. 10ª ed. São Paulo. Centro Universitário São Camilo, 2012.

Potter, Van Rensselaer. Bioética: Ponte para o Futuro,1971.

Wolff, Philip; Rocha, Claudia; Alvarenga, Raquel; Zuculo, Jaqueline, Guimarães, Fernando; Pinheiro, João;  Grassi, Josimar;  Gomes, Luiz;  Azambuja, Ricardo. (2018). Code of Ethics and Conduct of the Brazilian Association of Embryologists – PRONÚCLEO. JBRA assisted reproduction. 23. DOI: 10.5935/1518-0557.20180067

 

 

 

Conheça os autores:

 

Jaqueline Verceze Bortoliero, BSc

Bióloga pelo Centro Universitário Barão de Mauá, Especialista em Reprodução Assistida pela Rede Latinoamericana de Reprodução AssistidaEmbriologista Sênior na clínica Matrix – Prof. Dr. Marcos Moura, Ribeirão Preto – SP, Membro do comitê de Ética do PRONUCLEO e consultora Fertitech- Tecnologia em Reprodução Assistida

 

Raquel de Lima Leite Soares Alvarenga  BSc, MSc., PhD

Doutora em Biologia Celular pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Doutorado Sanduíche pela Université de Rennes 1, França, Mestre em Morfologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Especialização em Embriologia pelo CRBio-4, Bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Especialista em Embriologia Clínica e Diretora em Fertitech – Tecnologia em Reprodução  Assistida, Embriologista Sênior e Sócia-proprietária em Cegonha Medicina Reprodutiva. Membro do comitê de Ética do PRONUCLEO.

 

Fernando Marques Guimarães, BSc. MSc.

Mestre pelo Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Especialista em Reprodução Assistida, graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Embriologista Sênior em Instituto Verhum e Consultor Fertitech – Tecnologia em Reprodução Assistida, Membro do comitê de Ética do PRONUCLEO.

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