CONTAMINAÇÃO CRUZADA EM BOTIJÕES DE CRIOPRESERVAÇÃO

11 jun, 2024

Contaminação cruzada é conceituada como sendo a transferência de microorganismos patogênicos de uma pessoa e/ou local contaminado para outro que não esteja contaminado.

Nos Laboratórios de Fertilização in vitro utilizamos botijões de nitrogênio líquido para armazenar células germinativas, tecidos germinativos e embriões humanos, e o risco de contaminação microbiológica é uma preocupação constante, é essencial minimizar esse risco a fim de preservar a viabilidade dos gametas e embriões, evitando assim infecções gestacionais.

Segundo as diretrizes da Resolução da Diretoria Colegiada – RDC nº 771, de 26 de Dezembro de 2022, as recomendações são:

“ Subseção III, Parágrafo único: “O nitrogênio utilizado para abastecimento dos botijões deve ser de uso hospitalar, atestado nos registros do fornecedor do material.” Art. 83. “As amostras de células germinativas, tecidos germinativos e embriões humanos devem ser armazenadas com clara separação entre elas.”  Parágrafo único. “A separação de que trata o caput deste artigo pode ser realizada por sistema de organização das canecas no interior de um mesmo contêiner.” Art. 84. O armazenamento de células germinativas, tecidos germinativos e embriões humanos deve observar clara distinção e segregação entre amostras liberadas, em quarentena, reagentes ou positivas para agentes infeciosos, e rejeitadas, de modo a evitar trocas e contaminações cruzadas. Além disso, o Centro de Reprodução deve dispor de:

I – 1 (um) contêiner para amostras não liberadas, de doador, quando couber; II – 1 (um) contêiner para amostras liberadas, de doador, quando couber; III – 1 (um) contêiner para amostras não liberadas, de pacientes, quando couber; IV – 1 (um) contêiner para amostras liberadas de paciente; V – 1 (um) container para cada tipo de agente infeccioso positivo ou reagente, no caso de processamento de amostras com resultados laboratoriais reagentes ou positivos, observado o disposto nas Seções VI e VII do Capítulo III desta Resolução.”

Essas diretrizes muito provavelmente foram pensadas e escritas pelo fato de que Tedder et al. (1995) relatou pela primeira vez a contaminação cruzada de tecido criopreservado, quando várias infecções virais por hepatite B em humanos foram rastreadas como contaminação cruzada durante o armazenamento de medula óssea. Foi essa contaminação que deu início a investigações científicas para estudar esse método de transmissão da doença (Tedder et al. 1995).

De adordo com a literatura, infecção cruzada poderia ocorrer das seguintes  maneiras:

  • O nitrogênio líquido (NL) como agente de contaminação: risco potencial de contaminação cruzada de embriões armazenados em nitrogênio líquido contaminado, ou seja, o embrião ser contaminado a partir de NL.
  • A amostra biológica como agente de contaminação: contaminação cruzada de nitrogênio líquido estéril a partir de embriões infectados, ou seja, a transmissão de um patógeno oriundo da amostra biológica contaminada para outra ou para o NL durante o armazenamento.

Os microorganismos podem entrar nos botijões de NL durante o manuseio do embriologista e as fontes de contaminação microbiana são organismos colonizadores da pele, como Streptococcus, Propionibacterium e Staphylococcus, que são introduzidos durante o manuseio das amostras (Bajerski et al. 2020).

Molina e al (2016) avaliaram a contaminação cruzada entre palhetas assépticas fechadas (seladas) ou abertas armazenadas em NL. Nenhuma bactéria ou fungo foi encontrado em qualquer meio de desvitrificação e nem nas palhetas (selada ou aberta). No entanto, bactérias (Bacillus spp., Stenotrophomonas maltophila, Enterobacter spp.) foram encontradas em todos os tanques de armazenamento testados e utilizados para criopreservação de oócitos e embriões, indicando que microrganismos estavam presentes no NL e sobreviveram ao armazenamento (Molina et al. 2016).

Bajerski et al. (2020) relataram um aumento no número de bactérias quando se avaliou o tempo de armazenamento e o número de aberturas do botijão de NL. Foram analisadas 89 amostras de 27 botijões, demonstrando também que a posição específica onde o recipiente era armazenado dentro do botijão também fazia diferença.  Em resumo, para controlar o risco de contaminações microbianas, as condições do ambiente externo ao botijão (ar, água, filtro, produtos laboratorias utilizados, sistemas de abastecimento de NL) e o manuseio das amostras devem ser avaliados cuidadosamente para excluir potenciais contaminantes para o interior do botijão (Bajerski et al. 2020).

Sabe-se que após o uso prolongado, os botijões de NL podem ficar contaminados e deveriam passar por um processo de descontaminação, pelo menos anualmente, ão com produtos que não reagissem com soluções que não reagissem com alumínio ou aço. Pessoa et al (2014) recomendam a descontaminação dos botijões com glutaraldeído a 2% e etanol 70%. Ainda em relação aos cuidados com o botijão, é importante reduzir a formação de cristais de gelo no seu interior, pois estes podem aprisionar microrganismos ambientais (Bajerski et al., 2021).

Os relatos da literatura demonstram que o NL normalmente não é a fonte de grandes contaminações e apenas alguns estudos forneceram evidências do risco potencial de contaminação cruzada em sistemas abertos (Bielanski et al., 2000). A contaminação da amostra pode ser evitada com o uso de dispositivos hermeticamente fechados e/ou embalagem secundária (Bajerski et al., 2020; Bielanski et al., 2000, Clarin et al., 2020).

No entanto, deve-se ter muito cuidado antes de extrapolar que, simplesmente porque o NL pode abrigar agentes infecciosos, esses agentes resultarão em infectividade. Várias condições devem ser atendidas para que um patógeno infecte um tecido; primeiro o patógeno deve entrar nas células, isso requer que o NL contaminado possa entrar no recipiente de armazenamento e que o patógeno possa entrar na célula, e segundo, o tecido (oócitos ou embriões) deve ter receptores para aquele patógeno, alem do mais, os oocitos e embrioes possuem uma barreira fisica de protecão, a zona pelúcida.

Nunca é demais enfatizar que, após o uso extensivo de inúmeros mecanismos de busca e revisão de bases de dados, não encontramos relatos publicados de qualquer contaminação cruzada em condições de trabalho em Laboratórios de Fertilização in vitro. Há relatos de contaminação em condições totalmente não relacionadas (por exemplo, banco de sangue), ou cenários que não têm relação com cultura de embriões ou condições de criopreservação de embriões humanos. No entanto, com base em relatos não relacionados, há aqueles profissionais que assumiram que há um risco significativo de contaminação cruzada, apesar da falta de evidências. Sem uma compreensão clara do que os fatos científicos realmente sugerem, o desenvolvimento de regulamentações que eventualmente possam ser colocadas em prática e não prejudiquem a viabilade de gametas e embriões humanos é crucial.

Claramente, mais dados são necessários, particularmente de experimentos que refletem com mais precisão as condições em um Laboratório de Fertilização in vitro com embriões humanos.

Concordamos que é prudente desenvolver protocolos adequados e cientificamente embasados para a criopreservação e armazenamento de tecidos reprodutivos que garantam a biosseguranca das amostras, bem como procedimentos de gestão de qualidade e gestão de riscos. A segurança dos gametas e embriões dos nossos pacientes continua sendo nossa principal responsabilidade e nós, embriologistas, precisamos assumir um papel de liderança em como isso é realizado agora e no futuro.

 

CAROLINA OLIVEIRA CAMPOS DA ROSA

EMBRIOLOGISTA SENIOR NA CLINICA BROWN FERTILITY, WINTER GARDEN, FLORIDA, EUA

MESTRADO E DOUTORADO EM CIENCIAS MEDICAS – BIOLOGIA DA REPRODUCAO PELA FACULDADE DE MEDICINA DE RIBEIRAO PRETO – USP/HC

ESPECIALISTA EM REPRODUCAO HUMANA ASSISTIDA PELA ASSOCIACAO INSTITUTO SAPIENTIAE, SP

BIOMEDICA GRADUADA PELO CENTRO UNIVERSITARIO BARAO DE MAUA, RIBEIRAO PRETO, SP

 

Referências Bibliográficas:

Tedder RS, Zuckerman MA, Goldstone AH, Hawkins AE, Fielding A, Briggs EM et al. (1995). Hepatitis B transmission from contaminated cryopreservation tank. Lancet. 1995;346(8968):137-40

Bielanski A, Nadin-Davis S, Sapp T, Lutze-Wallace C (2000).  Viral contamination of embryos cryopreserved in liquid nitrogen. Cryobiology 40(2):110–116

Mortimer D. (2004). Current and future concepts and practices in human sperm cryobanking. Reprod Biomed Online. 2004, 9(2):134-51

Tomlinson M. (2005). Managing risk associated with cryopreservation. Hum Reprod. 2005;20(7):1751-6)

Kimball O. Pomeroy, Stanley Harris B.S., Joe Conaghan, Margaret Papadakis, Grace Centola, Rita Basuray, David Battaglia (2010). Storage of cryopreserved reproductive tissues: evidence that cross-contamination of infectious agents is a negligible risk. Fertil Steril 2010; 94:1181–8.

Pessoa GA, Rubin MIB, Silva CAM, Rosa DCd (2014). Decontamination of naturally contaminated liquid nitrogen storage tanks. Rev Bras Zootec 43(5):244–249.

Molina I, Mari M, Martínez JV, Novella-Maestre E, Pellicer N, Pemán J (2016). Bacterial and fungal contamination risks in human oocyte and embryo cryopreservation: open versus closed vitrifcation systems. Fertil Steril 106(1):127–132.

Mark G. Larman, Shu Hashimoto, Yoshiharu Morimoto, David K. Gardner (2016). Cryopreservation in ART and concerns with contamination during cryobanking. Reprod Med Biol (2014) 13:107–117

Clara Marin, Ximo Garcia-Dominguez, Laura Montoro-Dasi, Laura Lorenzo-Rebenaque, José S. Vicente and Francisco Marco-Jimenez (2020). Experimental Evidence Reveals Both Cross-Infection and Cross-Contamination Risk of Embryo Storage in Liquid Nitrogen Biobanks. Animals 2020, 10, 598.

Bajerski F, Bürger A, Glasmacher B, Keller ERJ, Müller K, Mühldorfer K, Nagel M, Rüdel H, Müller T, Schenkel J, Overmann J (2020). Factors determining microbial colonization of liquid nitrogen storage tanks used for archiving biological samples. Appl Microbiol Biotechnol 104(1):131–144

Bajerski F, Manuela Nagel and Joerg Overmann (2021). Microbial occurrence in liquid nitrogen storage tanks: a challenge for cryobanking? Applied Microbiology and Biotechnology (2021) 105:7635–7650.

 

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