Transferência de embriões “3PN” ou descarte?
15 ago, 2022

Por Patrícia França
Um dos pontos críticos desempenhado pelos embriologistas em um laboratório de Fertilização in vitro (FIV) é a seleção morfológica dos embriões viáveis para transferência e/ou criopreservação.
Embriões viáveis podem ser considerados aqueles com a morfologia adequada para o estágio do desenvolvimento e cromossomicamente normais, quando avaliados geneticamente. Seja uma avaliação morfológica tradicional por microscopia estática ou uma avaliação morfocinética, através da tecnologia Timelapse, é importante que a classificação embrionária seja feita levando-se em consideração as características do embrião nas diferentes fases do desenvolvimento, sendo a primeira delas o estágio de zigoto no primeiro dia pós-inseminação (D+1). Nesse estágio a fertilização é confirmada pelo embriologista entre 16 e 18 horas após a FIV clássica ou ICSI através da verificação da presença de dois corpúsculos polares e da presença de dois pronúcleos (PN) simétricos, um de cada gameta. Outros aspectos podem e devem ser observados e registrados sobre o aspecto geral do zigoto como formação do halo citoplasmático, qualidade citoplasmática, a presença de estruturas não típicas, a quantidade, distribuição e tamanho dos corpos precursores de nucléolo – que, a propósito, não são precursores do nucléolo – entre outros)(1).
Não é raro que os embriologistas se deparem com oócitos fertilizados anormalmente, gerando zigotos que apresentam um número anormal de PN, em uma frequência aproximada de 10%(2). A prevalência dos zigotos tripronucleados varia entre 5,0% a 8,1% para FIV clássica e 2,5% a 6,2% para ICSI(3-5). Mecanismos como ativação partogenética e PN assincrônicos podem gerar zigotos com 1PN, enquanto que fertilização dispérmica de um oócito com FIV clássica ou a não extrusão do segundo corpúsculo polar com ICSI podem ser fenômenos que originam zigotos 3PN(6-8). A qualidade oocitária também influencia no aparecimento de 3PN. Foi demonstrado que um pico de estradiol elevado no dia do trigger com HCG e a recuperação de um maior número de oócitos (média de 15 oócitos no grupo de pacientes com zigotos 3PN comparada com média de 11 oócitos em um grupo sem zigotos 3PN) estão associados ao aumento na frequência de zigotos 3PN(5).
Um fato que pode gerar dúvidas na avaliação dos zigotos é a presença de um pronúcleo com menos de 15 µm de diâmetro, que pode ser considerado um micropronúcleo (micro PN)(9), ocorrendo como um terceiro PN em 0,7% dos oócitos fertilizados(2). Entre 77% e 85% dos zigotos 2.1PN, ou seja, aqueles com dois pronúcleos de mesmo tamanho e um terceiro pronúcleo menor, apresentam uma configuração diploide(2) e, se estudados geneticamente para ploidias, podem ser considerados para transferência embrionária, particularmente em pacientes para as quais não há outros embriões disponíveis. Muitos profissionais atuantes na área da Reprodução Humana Assistida indicam a realização de análise genética para o status de ploidia em blastocistos derivados de oócitos fertilizados anormalmente para se escolher o melhor embrião para ser transferido.
Mas quais as consequências causadas pela transferência de embriões originados de zigotos 3PN?
Embriões poliploides possuem mais de dois conjuntos de cromossomos (por exemplo, triploides ou tetraploides), ou seja, ao invés de apresentarem 46 cromossomos podem apresentar 69, no caso dos triploides. Nos estágios iniciais, a maioria dos zigotos 3PN aparenta ter clivagens celular normais, com desenvolvimento atrasado ou aneuploidias ocorrendo em um estágio mais tardio do desenvolvimento(10). Normalmente esses embriões não chegam a implantar no útero. Existem evidências de gestação triploide ocorrendo naturalmente, mas a maioria delas resulta em abortos e mortes neonatais(11). Recém-nascidos a termo sobrevivem tipicamente apenas por poucos dias. Estima-se que a prevalência de embrião 3PN em todas as gestações seja de 1% a 3%, e representa 15% a 18% dos casos citogeneticamente anormais dentre os abortos espontâneos(4,5) e os tetraploides são muito raros. Um estudo recente(12) descreveu um caso de gestação molar após transferência de um embrião de origem monopronuclear, que recebeu diagnóstico de euploide após PGT-A. Alguns estudos já demonstraram que blastocistos derivados de zigotos 1PN podem também ser triploides, sugerindo que é necessária uma cautela adicional quando se considera o uso clínico de embriões 1PN não testados geneticamente para fins reprodutivos, sem monitorar sua constituição de ploidia(02,13, 14).
Gestações triploides podem apresentar fenótipos aberrantes, dependendo da origem do conjunto extra de cromossomos. Se a origem for paterna (diândrica) a maioria dos conceptos é abortada no primeiro trimestre, e as gestações podem evoluir para molas hidatiformes parciais. Conceptos triploides por diginia (origem materna do conjunto cromossômico extra) sobrevivem até estágios mais tardios da gravidez, e apresentam, mais comumente, grave restrição de crescimento intrauterino, como resultado de insuficiência placentária, e placentas não-molar(15).
O que os laboratórios fazem com zigotos que apresentam alguma falha após a checagem de PN varia bastante. Devido a todas as implicações que envolvem a transferência de embriões originados de zigotos 3PN, a maioria dos laboratórios de FIV os descarta, incluindo os zigotos 2.1PN. Alguns reavaliam os zigotos fertilizados anormalmente após algumas horas (mais comumente 4 horas após a primeira checagem) e outros os cultivam em locais separados dos zigotos com fertilização normal(2).
Várias evidências reportadas nos últimos anos levantam um questionamento sobre o descarte de embriões originados de zigotos com fertilização anormal. Nem sempre embriões 3PN se desenvolvem em embriões triploides e uma considerável proporção de embriões 1PN e 3PN é diploide. Alguns estudos sugerem que embriões 3PN, originados de ICSI, são dotados de mecanismos para corrigir a triploidia para uma diploidia. 62,5% dos embriões 3PN de ICSI progridem para o estágio de blastocisto, sendo que 54,5% são blastocistos diploides heteroparentais(4, 16). Outros relatos demonstraram nascidos vivos saudáveis após a transferência de embriões derivados de zigotos 1PN e 3PN(7, 13, 16, 17).
A maioria das tecnologias de testes genéticos pré-implantacional é eficiente para se detectar ganhos ou perdas de cromossomos individuais, mas tem uma limitação para se detectar ploidias a partir de uma única biópsia de trofectoderma (TE). Isso acontece porque as estimativas do número de cópias cromossômicas são derivadas da quantidade relativa de DNA presente na biópsia e não pela quantificação individual do número de cromossomos presentes(18). SNP arrays (microarranjo para polimorfismos de nucleotídeos únicos) ou outros métodos de tipagens por SNPs podem detectar triploidias, mas não tetraploidias(19). Mas essas plataformas estão sendo rapidamente substituídas por novas tecnologias com custos significativamente reduzidos por amostra e com maior resolução de dados, estendendo suas aplicações além da triagem de aneuploidias(18). Métodos de sequenciamento de nova geração (NGS) comercialmente disponíveis que envolvem amplificação de todo genoma (WGA) não realizam avaliação de poliploidia(20), mas existem plataformas NGS que seguem uma abordagem inicial de amplificação direcionada (sequenciamento direcionado de próxima geração, ou tNGS) que permite a geração de dados de genotipagem de SNPs paralelamente à análise do número de cópias cromossômicas, que detectam com precisão triploidia em blastocistos humanos de uma única biópsia TE(18).
A resolução em vigor do Conselho Federal de Medicina (CFM)(21) especifica que embriões viáveis que forem excedentes à transferência embrionária podem ser criopreservados e não trata dos embriões inviáveis, o que, automaticamente, permite-nos descartá-los sem autorização judicial.
A resolução que atualmente regulamenta o funcionamento dos centros de Reprodução Humana Assistida(22), designados como Bancos de Células e Tecidos Germinativos (BCTGs), exige que sejam enviados os relatórios anuais com os dados quantitativos sobre os tratamentos de Reprodução Assistida, sendo que um dos dados que deve ser enviado é o número de oócitos com dois PN formados no laboratório e nada diz sobre os zigotos com 3 PN.
Dessa forma, o destino dos embriões originados de zigotos 3 PN não é taxativamente o descarte. Para se obter o embrião com a melhor qualidade, uma pre-seleção deve ser feita para escolher os embriões com o maior potencial de implantação e com o menor risco à saúde da mulher e do bebê e a ploidia deve ser levada em consideração nessa escolha. Os métodos atuais mais usados de seleção embrionária são baseados na morfologia, metabolômica, morfocinética e no diagnóstico genético pré-implantacional. A investigação da ploidia do embrião provavelmente se tornará uma rotina nos laboratórios de RA em um futuro próximo, otimizando-se a escolha dos embriões com potencial reprodutivo e minimizando o descarte de embriões com potencial de viabilidade reprodutiva.
REFERÊNCIAS
- Alpha Scientists in Reproductive Medicine and ESHRE Special Interest Group of Embryology. The Istanbul consensus workshop on embryo assessment: proceedings of an expert meeting. Human Reproduction, v. 26, n.6, 2011.
- Antonio Capalbo, Nathan Treff, Danilo Cimadomo, Xin Tao, Susanna Ferrero, Alberto Vaiarelli, Silvia Colamaria, Roberta Maggiulli, Giovanna Orlando, Catello Scarica, Richard Scott, Filippo Maria Ubaldi, Laura Rienzi. Abnormally fertilized oocytes can result in healthy live births: improved genetic technologies for preimplantation genetic testing can be used to rescue viable embryos in in vitro fertilization cycles. Fertility and Sterility, 108, n. 6, 2017.
- Porter, R., Han, T., Tucker, M.J., Graham, J., Liebermann, J., Sills, E.S., 2003. Estimation of second polar body retention rate after conventional insemination and intracytoplasmic sperm injection: In vitro observations from more than 5000 human oocytes. Assist. Reprod. Genet., v. 20, 2003.
- Grau, N.; Escrich, L.; Martin, J.; Rubio, C.; Pellicer, A.; Escribá, MJ. Self correction in tripronucleated human embryos. Fertility and Sterility, 96, n. 4, 2011.
- Li, M.; Zhao, W.; Xue, X.; Zhang, S.; Shi, W.; Shi, J. Three pro-nuclei incidence factors and clinical outcomes: a restropective study from the fresh embryo transfer of in vitro fertilization with donor sperm IVF-D. Int J Clin Exp Med, v. 8, n. 8, 2015.
- Staessen, C.; Janssenswillen, C.; Devroey, P.; Van Steirteghem, AC. Cytogenetic and morphological observations of single pronucleated human oocytes after in-vitro fertilization. Human Reproduction, v. 08, n.02, 1993.
- Staessen, C., Van Steirteghem, AC. The chromosomal constitution of embryos developing from abnormally fertilized oocytes after intracytoplasmic sperm injection and conventional in-vitro fertilization. Human Reproduction, v. 12, n.02, 1997.
- Sachs, AR; Politch, JA; Jackson, KV; Racowsky, C; Hornstein, MD; Ginsburg, ES. Factors associated with the formation of triploid zygotes after intracytoplasmic sperm injection. Fertility and Sterility, 73, n. 06, 2000.
- Nakajima, N; Kawano, H; Takai, A; Iimura, Y; Mutsumi, A; Azusa, O; Chen, M; Yamashita, N. An analysis of the size of micro pronucleus in 2.1 pronuclear zygotes by using time-lapse images. 38th Hybrid Annual Meeting of the ESHRE, Milan. P-198, 2022.
- Munné, S; Cohen, J. Chromosome abnormalities in human embryos. Human Reproduction Update, v. 04, n. 06, 1998.
- Feenan, K; Herbert, M. Can abnormally fertilized zygores give rise to viable embryos? Human Fertility, v. 09, n. 03, 2006.
- Zhou, T; Yueting, Z; Zhang J; Li, H; Jiang, W; Zhang Lu, Yan, J; Chen, ZJ. Effects of PGT-A on Pregnancy Outcomes for Young Women Having One Previous Miscarriage with Genetically Abnormal Products of Conception. Reproductive Science, v. 28, n. 11, 2021.
- Itoi F, Asano Y, Shimizu M, Honnma H, Murata Y. Birth of nine normal healthy babies following transfer of blastocysts derived from human single-pronucleate zygotes. Journal of Assisted Reproduction and Genetics, v. 32, 2015.
- Bradley CK, Traversa MV, Hobson N, Gee AJ, McArthur SJ. Clinical use of monopronucleated zygotes following blastocyst culture and preimplantation genetic screening, including verification of biparental chromosome inheritance. Reproductive Biomedicne Online, v. 34, 2017.
- McFadden, D.E., Robinson, W.P. Journal of Medical Genetics, v. 43, 2006.
- Grau, N; Escrich, L; Galiana, Y; Meseguer, M; García-Herrero, S; Remohí, J; Escribá, MJ. Morphokinetics as a predictor of self-correction to diploidy in tripronucleated intracytoplasmic sperm injection–derived human embryos. Fertility and Sterility, 104, 2015.
- Mateo S, Parriego M, Boada M, Vidal F, Coroleu B, Veiga A. In vitro development and chromosome constitution of embryos derived from monopronucleated zygotes after intracytoplasmic sperm injection. Fertility and Sterility, 99, 2013.
- Marin D, Zimmerman R, Tao X, Zhan Y, Scott RJ, Treff NR: Validation of a targeted next generation sequencing-based comprehensive chromosome screening platform for detection of triploidy in human blastocysts. Reproductive Biomedicne Online, v. 36, 2017.
- Doody, KJ, Merrion, K, Maisenbacher, MK, Kijacic, D, Kiehl, M. Triploidy–a critical yet underdiagnosed embryo abnormality: review of data from preimplantation genetic screening via single nucleotide polymorphism microarrays with bioinformatics. Fertility and Sterility, 106, 2016.
- Treff, NR, Zimmerman, RS. Advances in preimplantation genetic testing for monogenic disease and aneuploidy. Annual Review of genomics and human genetics, v. 18, 2017.
- Conselho Federal de Medicina. RESOLUÇÃO CFM nº 2.294/2021. 2021.
- Agência Nacional de Vigilância Sanitária. RDC No 23 de, DE 27 de Maio de 2011.
-
Compartilhe